O interesse pelas memórias e pelas práticas vernaculares associadas aos lugares, e, correlativamente, a adoção de uma metodologia de trabalho com raízes na pesquisa antropológica são aspectos que têm distinguido a prática artística de João Grama, com maior incidência a partir do momento em que o artista passou a trabalhar preferencialmente sobre um território concreto, a zona mais a Oeste do Algarve. Foi nesta mesma região que João Grama encontrou o tema e os objetos representados nesta série: armadilhas tradicionais de pesca e caça que continuam a ser utilizadas por membros das comunidades locais, ainda que o seu uso seja ilegal. Até a um passado recente muitas destas armadilhas uadicionais eram reconhecidas como arte oficial de pesca e caça, tendo posteriormente vindo a surgir sucessivas deliberações legislativas que determinaram a sua proibição, maioritariamente justificadas com a necessidade de racionalizar o aproveitamento dos recursos naturais e a defesa da sustentabilidade ambiental. Este género de armadilhas variam na forma e nos materiais de acordo com a região, e como tal exprimem diferentes modos de adaptação às circunstâncias culturais e ambientais de cada região — i.e. os habitats naturais das espécies-alvo, as características morfológicas do terreno, o tipo de fundo do mar e regime de correntes, etc. Enquanto objetos mediadores da relação do Homem com os recursos naturais (na terra, no rio, no mar), as questões em torno da sua utilização e (i)legalidade não podem deixar de suscitar reflexões de âmbito histórico, sociocultural e político. São objetos rudimentares, precários e obsolescentes, cujo valor reside na sua sobriedade e eficácia funcional. Alguns deles ajustam-se às imagens estereotipadas de armadilhas, como é o caso da que se assemelha a uma jaula retangular de metal e que é usada na caça de pequenos mamíferos (raposa, furão), ou o Covo que inclui uma peça de vime com um tampa em cortiça e uma enxada e que é utilizado na pesca em rios mas também no mar na apanha de moreias. As restantes armadilhas têm uma aparência mais inusitada que não denuncia a sua função, como a Estaca, que agrega um ferro, um pedaço de cortiça flutuante, anzol e corda de nylon e é utilizado na captura de robalos, ou a armadilha feita com um tubo de PVC preso a uma base de cimento usado na pesca de polvo com mais de 10 quilos. Dos materiais empregues ao tipo de fabricaqäo que os caracteriza, tudo nestes objetos parece simples e elementar, ao ponto de podermos pensar que qualquer um de n6s os poderia construir. Refira-se que sobre estes objetos näo existe nenhum inventårio ou estudo sobre a sua construcäo e condigöes ideais de utilizagäo, o que significa que o seu conhecimento depende de modos diretos de transmissäo e partilha, o que lhes confere um inestimåvel valor antrop016gico e temporal.
Tal como na sua série anterior, As cordas, que focava a presenga das cordas usadas pelos apanhadores de percebes nos penhascos e falésias da costa atlåntica do Algarve, nesta nova série de
Joäo Grama, sintomaticamente intitulada de O vicio da terra, constata-se uma inclinaqäo do artista por temas ligados a uma vivéncia territorial na qual prevalece uma relagäo direta e estreita com a natureza, como também uma atengäo especial pelas pråticas e pelos instrumentos que apontam para uma tecnicidade primåria, arcaica e artesanal. Em qualquer dos casos säo realidades em radical contradiqäo com os modos e estilos de Vida (urbanos) determinados pela omnipresenga dos dispositivos tecn016gicos, pela racionalidade econömica e pelo espetåculo cultural. Neste contexto, o caråcter primårio e clandestino que define a atualidade destas armadilhas articula-se como reaqäo a um certo maquinismo social, com as suas leis e obsessöes tecn016gicas, mas também como tentativa de suspensäo do primado do racional a favor do primado da vontade individual, da inventividade e da resiliéncia.
O vicio da terra é constitufdo por um conjunto de fotografias acompanhadas por uma colegäo de palavras e expressöes que orbitam em torno da utilizacão das armadilhas: bardo/ osso queimado/onde o mar näo bata muito/lua cheia, lua nova/cabega de areia novo/andarilho. Descontextualizados da sua enunciagäo, estes fragmentos formam um texto de unidades descontinuas, uma invulgar mas significante prosa poética. Quanto ås imagens, elas representam os objetos sobre fundos neutros e homogéneos através de uma Iuz densa e escassa. A uma certa diståncia aparentam ser planos monocromäticos.
Por isso são fotografias que requerem a aproximação do espectador para que a perceção se abra à inteligibilidade, à apreciação da singularidade material e estética dos objetos. A escuridão é aqui uma forma de restituir alguma distância relativamente às armadilhas, de denegar a objetividade e o efeito de transparência que por vezes se atribuem às fotografias. E pois uma obscuridade paradoxal, melancólica e dissimulatória, que suscita a dúvida se estamos perante uma luminosidade transitória inerente a um processo de desvelamento ou se, pelo contrário, a escassez de luz e visibilidade é o prenúncio de um apagamento total, de um desaparecimento definitivo.
Sérgio Mah
The focus on the memories and vernacular practices associated with places, and, correspondingly, the adoption ofa work methodology rooted in the practices of anthropological research are aspects that characterize João Grama's artistic work, especially after the artist started focusing his work on a specific territory, the west Algarve. It was in this region that João Grama found the theme and the objects he has represented in this series: traditional fish and animal traps. Despite being illegal, these traps are still used by the locals.
Not long ago many of these traps were recognized as official tools for hunting and fishing, but were progressively banned by recent laws aiming to rationalize the use of natural resources and protect environmental sustainability. Depending on the region they are produced, these traps vary in shape and in the materials used in their construction. As such, they reveal different strategies and adaptations to the environmental and cultural circumstances of each region — i.e. the natural habitats of the targeted species, the morphological characteristics of the terrain, seabed, ocean currents, etc. As objects that mediate the relation between humans and the natural resources they need for survival (on land, in rivers, or at sea), the issues that arise from their use and legal status excite various historical, socio-cultural, and political speculations.
Rudimentary, preearious and obsolescent, the value of these objects lies in their simplicity and efficiency. Some of them correspond to the stereotypical image of the trap, as the one resembling a rectangular metal cage used to u•ap small mammals (foxes, ferrets), or the Covo, a wicker basket with a cork lid and a hoe, used as a u•ap for fish in rivers, and at sea to trap moray eels. The other traps have stranger shapes that often do not immediately reveal their functions. The Estaca (the pole) combines an iron rod with a cork buoy, a fish hook and a nylon line, and is used to capture seabass. Another one, a simple PVC pipe fixed to a concrete base is used to trap octopuses weighing over IO kilograms. From the materials used to how they are manufactured, everything in these objects seems simple and rudimentary. They seem easy to reproduce. There are no inventories or studies made on these objects, their construction methods or ideal conditions of use. This means their existence and the knowledge associated with them depends solely on direct processes of transmission. This gives them priceless temporal and anthropological value.
Just like in his previous series, As cordas (The ropes), focused on the image of the ropes which are used by the men collecting goose barnacles, hanging from the cliffs of the Atlantic coast of the Algarve, this new series byJoäo Grama, O vicio da terra', confirms the artist's propensity for themes connected to an experience of the territory characterized by a direct and close relationship with nature, and his attention to the practices and instruments that point towards primal, archaic, and artisanal techniques. In both cases, Grama focuses on realities radically opposed to the (urban) lifestyles dictated by the omnipresence of technological devices, economic rationality, and cultural spectacle. In this context, the primary and clandestine character that today defines these traps is articulated as a reaction to a certain social machinism, to its laws and technological obsession, but also as an attempt to reject the primacy of the rational in favor of the primacy of the will of the individual, inventiveness and resilience.
O vicio da terra comprises a number of photos completed with a selection of words and expressions associated with the use of these traps: bardo/ osso queimado/ onde o mar näo bata muito/lua cheia, lua nova/ cabega de areia novo/andarilho (see translator's note, page 119). Out of context, these fragments create a text of discontinuous units, an unusual but meaningful poetic prose. The images represent the objects standing against neutral and homogenous backgrounds, under dim and dense light. At a distance, they seem almost monochromes. Because ofthis, these are photographs which require the spectator to approach them so that their perception opens to intelligibility, to the appreciation of the objects' material and aesthetic singularity. Darkness is a way to restore some distance between us and these u•aps, a way to deny the objectivity and transparence that sometimes is attributed to photography. This paradoxical, melancholic, and deceiving darkness makes us doubt between revelation and oblivion: is this transitory light the augur of the revelation of these objects, or, on the contrary, is its scarcity the harbinger of their total and definitive evanescence?
Sérgio Mah