“Que se dane o passado”
Marisqueiro anónimo
Hoje o mar não deixa é um filme, resultado de quatro anos de observação e vivência regular do artista com os marisqueiros da orla costeira de Vila do Bispo e Sagres.
Mas não é um filme etnológico, ainda que os pressupostos do trabalho de campo estejam imbuídos na obra e na sua história de produção. É um filme sobre os contornos ontológicos da imagem e do seu confronto com a construção complexa de imaginários. E é também um olhar sobre uma velha dialética entre visibilidade e dizibilidade, sobre os limites representativos da imagem e as apetências imagéticas de toda a linguagem.
O primeiro aspecto desta ontologia é a noite, medida de tempo e duração do filme, busca de uma profundidade do invisível, tal como a refere Blanchot: “Ce qui apparaît dans la nuit est la nuit qui apparaît, et l’etrangeté ne vient pas seulement de quelque chose d’invisible qui se ferait voir à l’abri et à la demande des ténèbres: l’invisible est alors ce que l’on ne puisse cesse de voir, l’incessant qui se fait voir” (1)
Ao longo de todo o filme existe uma imanência do ver, que não advém do domínio das imagens, mas que se alicerça no léxico descritivo do dar a ver através das palavras. Na imagem da noite inscrevem-se as vozes dos pescadores, naquilo que surge, primeiro, como uma imagem abstrata das palavras, e que se vai desenvolvendo como uma narrativa descritiva sobre o mar.
Não devemos confundir a imagem da noite com a ausência de imagem, trata-se na verdade do tempo da noite que se revela dia no tempo estrutural do filme, não é um espaço simbólico de não visibilidade par dar corpo à imaginação das palavras, é antes a formulação literária de que “la nuit ne parle que du jour, elle en est le pressentiment, elle en est la réserve et la profondeur.” (2)
Do ponto de vista simbólico, a noite é para os pescadores/marisqueiros o tempo da procura da verdade sobre o seu dia. Um tempo de observação, de troca de experiências, de evocação duma intuição apreendida e do desenrolar duma linguagem construída segundo metáforas, associações entre o natural e o cultural, num particularismo que se modifica de local para local.
O outro aspecto deste questionamento ontológico é a tensão entre ver e dizer, a complexa transmutação de referentes e significados entres estes dois campos, em prol duma maneira de entender que almeja uma visão.
Daí que a narrativa, enquanto forma de descrição, tenha um papel tão preponderante no filme de João Grama. Trata-se de estabelecer uma cartografia através da linguagem, dos muitos estados do mar e da topografia da costa. Cada rocha é nomeada individualmente, ao mar são atribuídos estados descritivos pormenorizados que resultam duma observação demorada e empírica, constituindo um vocabulário evocativo surpreendente.
Cada estado do mar, cada inflexão de cor, de ondulação, invisível ao olhar inexperiente, tem uma palavra que o descreve, que o nomeia, que o distingue, que lhe atribui propriedades descritivas suficientemente evocativas. “Mar atravessado”, “mar grosso”, “mar sem medida”, “mar fino”, “mar bruto”, são algumas das muitas interpretações do oceano pelos marisqueiros, num desfilar de adjetivos que buscam a profundidade duma representação, essencial para a decisão se descem as arribas perigosas ou ficam em terra.
Conforme refere Paulo Mendes, num caso de estudo, trata-se de “prosar”, segundo a terminologia dos marisqueiros que não é mais do que adquirir “as competências e as capacidades de percepção que os pescadores desenvolvem ao logos das suas vidas que lhes permitem diminuir/combater o aleatório constante da exploração dos recursos haliêuticos.”(3) E de forma mais ampla, o resultado de um processo relacional entre o homem e a natureza.
Na obra de João Grama, é precisamente o poder evocativo deste “prosar” que toma protagonismo em quase todo o filme. Porque nele se encontra a possibilidade histórica do descrever, “à la fois comme un procédé rhétorique, lié aux mots et à la tradition de l’ekphrasis, et comme opération visuelle, désignant um mode de représentation extensible à tous les procédés graphiques. Il est vrai que si la description renvoie bel et bien à une construction langagière, elle possède aussi une dimension visuelle, concernant autant les mots que les images participant à sa formation discursive.”(4)
Ao deixar a imagem entregue ao poder descritivo superlativo da palavra, ao explorar a “dupla poesia da imagem”, conforme refere Rancière(5), estamos perante um “regime de alteração da semelhança”. Aquilo que é definido pelo filósofo como “L’idée de la picturalité du poème qu’engage le célèbre Ut pictura poesis définit deux rapports essentiels: premièrement la parole fait voir, par la narration et la description, un visible non présent. Deuxièmement elle fait voir ce qui n’appartient pas au visible, en renforçant, atténuant ou dissimulant l’expression d’une idée, en faisant sentir la force ou la retenue d’un sentiment”.(6)
Nenhuma imagem poderia ser suficientemente esclarecedora do que os marisqueiros vêm, apenas podemos contemplar a superfície duma representação que se perde na vacuidade de tudo o que já vimos e julgamos conhecer. Porque ver tornou-se de forma demasiado literal o modo de conhecer.
João Grama destaca também a amplitude metafórica duma linguagem não erudita, construída entre falésias e segundo uma cartografia do perigo. Cada palavra é uma conotação, uma sugestão de um perigo sobre uma fronteira natural que nunca se conhece, apenas se tateia diante dum cíclico ato de observação.
A paisagem que se estende diante dos nossos olhos é a da distensão da palavra, da malha tecida dos seus significados, perante uma contemplação que é um ato de ação e não um estar diante eloquente.
Ao confrontar-nos com a descrição na sua forma mais superlativa, João Grama reitera a importância de preencher os vazios da imagem, fazendo a elegia do poder de evocação da palavra e do significado primordial de poïesis, enquanto verbo de ação.
1. Maurice Blanchot – L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 2009, p. 213-214.
2. Ibidem, p.219.
3. Paulo Mendes – O Mar é que Manda – Comunidade e Percepção do Ambiente no Litoral Alentejano. Lisboa: FCG-FCT, 2013, p. 222.
4. Teresa Castro – La pensée cartographique des images: cinéma et culture visuelle. Lyon: Aleás Cinéma, 2011, p. 214.
5. Jacques Rancière – Le destin des images. Paris: La Fabrique, 2003, p. 20.
6. Ibidem, p. 20.